Doutrina Monroe hoje: Por que a América Latina ainda é visto como 'quintal dos EUA'?

A Doutrina Monroe, formulada em 1823 pelo presidente americano James Monroe, é uma das políticas externas mais duradouras e controversas dos Estados Unidos. Sua máxima — "América para os americanos"
— foi inicialmente interpretada como uma defesa contra o colonialismo europeu, mas, ao longo dos séculos, transformou-se em justificativa para intervenções e dominação dos EUA sobre a América Latina e o Caribe. Recentemente, declarações de autoridades do governo Trump reacenderam o debate ao referirem-se à região como "quintal" dos EUA, evidenciando que a doutrina nunca deixou de influenciar as relações hemisféricas.
Origens e princípios da Doutrina Monroe
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Contexto histórico: Em 1823, a América Latina vivia um processo de independência das potências europeias. Monroe declarou que os EUA não tolerariam novas intervenções coloniais no continente, posicionando-se como protetores das jovens nações.
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Ambiguidade inicial: A doutrina foi recebida com entusiasmo por países como Brasil e México, que viram nela um apoio à soberania. No entanto, já carregava um viés de dominação, pois os EUA buscavam garantir sua influência econômica e política na região.
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Oposição ao Bolivarianismo: A doutrina contrariou projetos de unificação regional, como o Congresso do Panamá (1826), liderado por Simón Bolívar, que pretendia criar uma confederação latino-americana independente tanto da Europa quanto dos EUA.
Evolução e corolários: A doutrina se torna intervencionista
Ao longo dos séculos XIX e XX, a doutrina foi reinterpretada para justificar ações cada vez mais agressivas:
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Corolário Polk (1845): Justificou a Guerra contra o México (1846-1848), resultando na anexação de territórios como Texas e Califórnia.
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Corolário Roosevelt (1904): Conhecido como a política do "grande porrete" (big stick), autorizou intervenções militares para "proteger interesses americanos", como nas ocupações de Cuba, Porto Rico e República Dominicana.
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Século XX: A doutrina foi usada para apoiar ditaduras (como na Operação Condor) e impor ajustes econômicos neoliberais, sempre sob a retórica de "defesa da democracia" ou "combate ao comunismo".
A Doutrina Monroe hoje: Entre a retórica e a realidade
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Declaração de morte prematura: Em 2013, o secretário de Estado John Kerry afirmou que a doutrina estava "morta", promovendo uma era de cooperação igualitária. No entanto, especialistas apontam que ela nunca deixou de existir.
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Retomada sob Trump: Autoridades como Pete Hegseth (secretário de Defesa) referiram-se à América Latina como "quintal" dos EUA, defendendo a retomada de controle sobre áreas como o Canal do Panamá e a exclusão da influência chinesa.
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Tensões atuais: O Panamá tornou-se um ponto de conflito, com protestos contra o aumento da presença militar americana e acusações de violação da soberania nacional. A China, hoje um dos principais usuários do canal, é vista como rival estratégica.
Importância e relevância da Doutrina Monroe
- Geopolítica: Moldou a relação assimétrica entre os EUA e a América Latina, consolidando a região como zona de influência prioritária.
- Economia: Justificou a exploração de recursos naturais e mercados locais em benefício dos interesses americanos.
- Cultura política: Criou uma narrativa de "tutela" anglo-saxônica sobre países latino-americanos, muitas vezes tratados como instáveis ou incapazes de autogoverno.
Um legado de dominação e resistência
A Doutrina Monroe nunca morreu — apenas adaptou-se aos tempos. Se no século XIX serviu para afastar a Europa, no século XXI é usada para conter a China e reafirmar o poder dos EUA. Sua permanência revela um paradoxo: enquanto os Estados Unidos insistem em tratar a América Latina como "quintal", os países da região buscam maior autonomia, seja através de alianças com outras potências, seja por meio de protestos, como os recentes no Panamá. A história da doutrina é, portanto, a história de uma dominação resistida, cujo futuro dependerá da capacidade dos latino-americanos de redefinir seu lugar no mundo.