Idosas resistindo em prédio fantasma: A batalha judicial contra a pressão imobiliária em Fortaleza

No bairro nobre do Meireles, em Fortaleza, duas idosas enfrentam uma batalha judicial e emocional para permanecer em suas casas, cercadas por apartamentos vazios e parcialmente destruídos. Maria Elisier Balidas, 84 anos, e Maria Martha dos Santos, 79 anos, são as últimas moradoras do edifício Kátia, um prédio de três andares que se tornou um símbolo de resistência contra a pressão imobiliária. A reportagem da BBC News Brasil, escrita por Camilla Veras Mota em junho de 2025, revela os conflitos entre moradores, construtoras e a Justiça, destacando questões sobre direitos patrimoniais, valorização imobiliária e envelhecimento.
O contexto do conflito:
- O edifício Kátia faz parte de um complexo de cinco prédios antigos, localizados em um terreno de 5 mil m², valorizado por sua proximidade com a praia.
- A construtora Reata Arquitetura e Engenharia propôs a demolição dos prédios para construir duas torres de alto padrão, com apartamentos avaliados em
R$ 1,9 milhão.
- A maioria dos moradores aceitou um contrato de permuta: Trocaram seus apartamentos por unidades no futuro empreendimento, além de receberem ajuda de custo mensal
(R$ 2,8 mil).
- Elisier e Martha recusaram a proposta, alegando que o valor oferecido pela venda direta
(R$ 450 mil)
estava abaixo do mercado e que o contrato de permuta não garantia segurança jurídica.
A vida no "prédio fantasma":
- Com a saída dos vizinhos, os apartamentos foram esvaziados e parcialmente desmontados, com portas, janelas e grades removidas. As idosas relatam medo, solidão e sensação de abandono.
- Elisier chegou a cair em uma escada devido aos entulhos deixados pelas obras não autorizadas. Martha descreve o ambiente como "assustador", comparando-o a um filme de terror.
- A construtora e os demais moradores afirmam que a retirada dos itens foi "espontânea", para reaproveitamento ou venda, e negam intimidação.
A batalha judicial:
- O advogado das idosas, Stênio Gonçalves, alega que a demolição exige unanimidade entre os condôminos, o que não ocorreu. Em março de 2025, a Justiça concedeu uma liminar suspendendo as obras e ordenando a reconstrução dos danos (não cumprida até o momento).
- Os outros moradores entraram com uma ação pedindo a "adjudicação compulsória" (compra forçada) dos apartamentos das idosas, argumentando risco de desabamento. Laudos da Defesa Civil apontam "risco moderado", mas não condenam a estrutura.
- O juiz rejeitou o pedido, considerando os valores oferecidos
(R$ 458 mil e R$ 449 mil)
inferiores ao valor de mercado e a alegação de risco não comprovada.
As histórias de Elisier e Martha:
- Elisier: Vive no apartamento desde 1996, após a morte do marido, Eustratios. Vendeu tapioca na Beira Mar para sustentar a família e perdeu um filho na mesma casa, que chama de "ninho de saudades".
- Martha: Mineira, ex-enfermeira psiquiátrica, formou-se em Pedagogia aos 51 anos. Mudou-se para Fortaleza em 2010 e redescobriu a paixão pela pintura, decorando o apartamento com telas que celebram a cultura negra.
Relevância e impactos sociais:
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O caso reflete a pressão imobiliária em áreas nobres, onde prédios antigos são substituídos por torres de luxo, muitas vezes com flexibilização de leis urbanas (como o Plano Diretor de Fortaleza, que permite alturas acima do limite via outorga onerosa).
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Especialistas como Renato Pequeno (UFC) comparam a situação ao filme Aquarius (2016), que retrata uma mulher resistindo a uma construtora no Recife. Ele alerta que casos assim tendem a se repetir em grandes cidades.
A disputa levanta debates sobre direitos dos idosos, valor justo de indenizações e a ética nas negociações imobiliárias.
Justiça, memória ou especulação?
A resistência de Elisier e Martha vai além de uma disputa por metros quadrados: É uma luta por memória, dignidade e justiça. Enquanto a construtora insiste na demolição e os vizinhos pressionam por uma solução rápida, as idosas esperam uma proposta que reconheça o valor afetivo e financeiro de suas casas. O caso, ainda em trâmite judicial, simboliza os desafios do crescimento urbano desordenado e a vulnerabilidade de moradores antigos em meio à especulação imobiliária.
Como Martha resume: "Não queremos prejuízo deles, mas eles não hão de querer o nosso também."